Juan Delval: "É essencial saber como o aluno aprende"
Segundo o autor
espanhol, que pesquisa as concepções sociais de crianças e jovens, é necessário
entender quais são elas para ensinar bem
Daniela Almeida (novaescola@atleitor.com.br)
JUAN DELVAL "O
educador precisa tercomo referência as ideias preconcebidas pelos
estudantes para realizar sua tarefa satisfatoriamente."
Muito se
fala em "levantar o conhecimento prévio do aluno", mas pouco se sabe
realmente sobre os caminhos do pensamento infantil. Não existe um ponto de
partida zero para ensinar ou aprender. Todos possuímos um conhecimento, além de
representações e modelos elaborados e estabelecidos individualmente, para
entender o mundo.
Por compartilhar dessa visão, o
autor espanhol Juan Delval centrou seu trabalho na pesquisa sobre o
desenvolvimento do pensamento científico e no levantamento do que as crianças
acham sobre questões sociais. Conhecer as concepções delas, de acordo com ele,
é um passo importante para ensinar bem. "Uma vez que um dos objetivos da
escola é levar os estudantes a formar representações adequadas do mundo em que
vivem, o educador precisa ter como referência essas ideias preconcebidas para
realizar sua tarefa satisfatoriamente."
Catedrático
de Psicologia Evolutiva e de Educação na Universidade Autônoma de Madri, Delval
foi coordenador do Programa de Doutorado em Desenvolvimento Psicológico e
Aprendizagem Escolar da mesma universidade. Tem realizado conferências e
pesquisas em vários países ibero-americanos, entre eles Brasil, Chile,
Argentina, Colômbia, Cuba e México. Nesta entrevista, concedida a NOVA ESCOLA
quando esteve no país, em novembro do ano passado, Delval conta as principais
descobertas sobre a concepção de crianças e adolescentes a respeito da
sociedade.
Suas
pesquisas focam as idéias infantis em relação à sociedade. Elas podem ajudar a
escola a ensinar?
DELVAL Sim. Comecei a pesquisar o tema
em 1971. Entre os assuntos estudados, destaco o desenvolvimento das noções
econômicas em crianças e jovens, a percepção que eles têm da estratificação
social e dos próprios direitos, além do que pensam sobre Deus. Em todos os
levantamentos, nossas investigações mostram que eles constroem representações
em relação ao mundo e às questões que aprendem na escola. E elas vão mudando de
acordo com a idade.
Qual o
papel da escola, como instituição, nesse processo?
DELVAL Tomar como base os conceitos
infantis para ajudar a transformá-los em conhecimento científico. Muitas vezes,
o professor parte do pressuposto de que a criança chega à escola sem
conhecimento, e não é assim. Ela sabe menos que os adultos, mas tem o domínio
de outras competências, como a tecnologia. O desenvolvimento do conhecimento da
turma depende do que ela já conhece.
Como deve
ser isso na prática?
DELVAL O ideal é primeiro apresentar o
problema e, depois, formas de chegar à solução. Muitas vezes, a escola faz
exatamente o contrário: dá soluções para coisas que ainda não representam um
problema na cabeça dos estudantes. Daí a importância de trabalhar com base no
pensamento deles. Sabendo como aprendem, o professor pode levar em conta as
dificuldades que encontram.
Que
ideias infantis podem ser destacadas no que se refere ao desenvolvimento econômico?
DELVAL A primeira realidade econômica
com a qual os pequenos se relacionam é provavelmente a loja. Eles aprendem
muito cedo que esse é o lugar onde obtêm diversas coisas de que precisam e que
isso se dá em troca de dinheiro. Mas, por volta dos 5 anos, não entendem a
troca em si. Para eles, o dinheiro é um elemento ritual que permite a compra.
Muitas vezes, interpretam que o vendedor devolve mais dinheiro do que recebeu
porque olham a quantidade de notas e não o valor delas. Chegam ao ponto de dizer
que uma as fontes para obter dinheiro é a loja.
As
crianças compreendem o lucro?
DELVAL Não. Veja que curioso: até
os 11 anos, as entrevistadas nas pesquisas acreditavam que o dono da papelaria
cobra por um lápis o mesmo que paga na compra. Isso se explica pela confusão de
valores morais - recebidos por meio dos pais. Elas consideravam o lojista um
amigo que estava resolvendo um problema. Muitas diziam, inclusive, que ele
oferece os produtos com preço abaixo do custo porque, assim, vende mais. Apesar
de estarem imersas em uma sociedade centrada no lucro, não conseguem
entendê-lo.
Quem eram
os entrevistados?
DELVAL Crianças e jovens da
Inglaterra, da Holanda, da Itália e do México. Entre eles, havia quem
trabalhava nas ruas como vendedor ambulante e, mesmo nesse grupo, os resultados
foram muito semelhantes. Há pequenas alterações de acordo com as faixas
etárias, mas os que tinham um melhor conhecimento sobre o processo de compra e
venda também não conseguiam entender o lucro.
Por que
isso é difícil?
DELVAL Os pequenos têm dificuldade com
os cálculos e não conseguem separar o preço por unidade do preço total. Existem
também os obstáculos morais: é injusto cobrar mais do que aquilo que custa o
produto. Isso representa, na visão das crianças, o mesmo que tomar proveito de
alguém ou até mesmo roubar. Só mais tarde elas percebem que as relações de
amizade são regidas por normas morais, enquanto as relações econômicas têm
outros tipos de regra. Mesmo depois que entendem o lucro, é complicado
compreender o sentido de um banco.
Quais as
conclusões dos estudos em relação à estratificação social?
DELVAL Tanto no México como na Espanha,
quando perguntamos a diferença entre ricos e pobres, as respostas apareceram em
níveis de complexidade distintos. Os mais novos deram explicações embasadas em
aspectos aparentes e facilmente observáveis. Por exemplo: um menino explicou
que um engenheiro ganha mais que um pedreiro porque trabalha mais horas.
Provavelmente ele soube que o primeiro ganhava mais, mas, como não diferenciava
a "qualidade" dos trabalhos, teve de explicar apoiando-se no volume
de horas - outra informação de que provavelmente dispunha.
E entre
os mais velhos?
DELVAL Os que tinham entre 10 e 13 anos
afirmaram existir dois caminhos, um bom e outro mau: o dos que trabalham e o
dos que não trabalham. Eles enxergavam ainda um processo de escalada social. Na
faixa que ia até os 16 anos, os jovens já identificavam que a situação de uma
pessoa pobre ou rica é gerada por uma série de fatores internos (investimento
de tempo em estudos) ou externos (disponibilidade de vagas) e mostravam um
pensamento hipotético.
Em seu
livro Los Niños y Dios. Las Ideas Infantiles Sobre la Divinidad, las Orígenes y
la Muerte, são tratadas as imagens dos pequenos sobre Deus. Quais são
elas?
DELVAL O livro traz os resultados de uma
pesquisa que fiz com uma orientanda na Espanha e no México entre os que
frequentavam escolas católicas. Em relação a Deus, os pequenos têm uma ideia
muito concreta: é uma pessoa vestida com uma túnica comprida, que tem os
cabelos brancos e compridos e usa uma coroa. Ele fica no céu, rodeado de anjos.
Já os maiores pensam de forma mais abstrata e fazem uma reflexão pessoal sobre
o assunto. Para eles, Deus é um sentimento interno que tem a ver com a consciência
moral.
Como
essas concepções se formam?
DELVAL Uma das principais capacidades do
ser humano é criar representações da realidade que o rodeia. Não existe uma
realidade que independa do sujeito que a interpreta. Estabelecemos modelos dela
e, assim, conseguimos atuar de acordo com eles e fazer antecipações.
Que
representações são essas?
DELVAL As da própria vida social, que
incluem, por exemplo, como nos portar diante dos demais e o que esperamos que
os outros façam. O ideal é que as pessoas adquiram noções de como funciona o
processo de compra e venda, para que serve o dinheiro e qual o seu valor, como
se dá a organização política, como são as relações de poder, as diferentes
classes sociais e religiões e a função de instituições como a escola, a família
e a nação. Além disso, precisam entender como se dão os conflitos entre os
grupos.
Todas
essas ideias são transmitidas pelos adultos?
DELVAL O fato de o conhecimento ser
social e ser transmitido não significa que seja adquirido apenas por cópia ou transmissão
verbal. O sujeito que recebe uma informação não se limita a absorvê-la, mas tem
de reconstruí-la a seu modo. De outra forma, não seria possível explicar que as
concepções de crianças de diferentes idades em relação à sociedade sejam bem
diferentes das apresentadas pelos adultos. Ou ainda que as que têm a mesma
idade, mesmo que vivendo em diferentes países ou culturas, tenham noções
similares de sociedade.
Mas a
transmissão ocorre...
DELVAL Sim. O homem é um ser social que
só pode se desenvolver em sociedade. O fato é que os adultos fazem com que os
pequenos se convertam em membros dessa sociedade ao impor normas, valores,
atitudes e formas de comportamento que caracterizam os indivíduos dela. Esse
processo é chamado de socialização e é resultado, em parte, da pressão dos
outros e, em parte, da atividade de construção do próprio sujeito - o que
mapeamos nos estudos que realizamos.
De que
modo se dá a construção desses pensamentos pela criança?
DELVAL Ela recebe informações da
família, da escola e dos meios de comunicação: Brasília é a capital do Brasil,
médico é uma profissão de prestígio, a bandeira brasileira é azul, amarela,
verde e branca etc. Porém, como não esclarecem por que essas coisas são assim,
ela constrói uma explicação por si mesma, com os instrumentos intelectuais de
que dispõe. Desse modo, aprende desde cedo que para comprar algo é preciso
levar dinheiro à loja muito antes de conseguir explicar para que serve o
dinheiro.
Em que
momento ela alcança a total compreensão sobre isso?
DELVAL Quando recebe explicações, que
vão atuar sobre as normas e os valores e reorganizar tudo: o dinheiro é uma
moeda de troca e a bandeira é o símbolo de uma nação, por exemplo. Quando se
alcança um grau de entendimento maior, essas explicações proporcionam um novo
sentido às normas e valores, tornando possível refletir sobre eles e,
inclusive, duvidar de seus fundamentos. É isso que chamamos de pensamento
crítico.
Esse é o
caminho correto para a autonomia dos pequenos?
DELVAL Autonomia, do ponto de
vista cognitivo, é pensar por si mesmo. Do moral, é atuar de acordo com
princípios gerais, que sirvam para todos. Para que isso ocorra, é preciso haver
incentivo. Hoje não são dadas responsabilidades a eles, mas todos precisam
observar as consequências - para eles e para outras pessoas - de algo errado
que fazem. O objetivo, do ponto de vista da Educação moral, é interiorizar
regras e normas, que não são cumpridas por castigo, mas porque a consciência
diz que facilitam as relações entre diferentes indivíduos. Todos necessitam
compreender que a função das regras não é limitar, impedir, castrar e castigar,
mas regular as relações entre os indivíduos e estabelecer modelos que facilitam
a vida em sociedade.
Qual a
conclusão de seus estudos?
DELVAL A criança enxerga a sociedade de
uma forma muito diferente do que o adulto. Para ela, vivemos num lugar sem
conflitos, em que todos cooperam e os adultos detêm o conhecimento, que é algo
valioso. Os ricos são ricos, e os pobres, pobres - não há níveis intermediários.
Acredito que a origem de muitos problemas sociais, hoje em dia, reside na fase
em que os adolescentes descobrem que a sociedade não é, de maneira alguma,
racional e organizada, como tinham em mente. Eles experimentam, então, a
frustração por se sentirem impotentes para mudar a ordem das coisas.
Suas
pesquisas focam as ideias infantis em relação à sociedade. Elas podem ajudar a
escola a ensinar?
Quer saber mais?
BIBLIOGRAFIA
Aprender
a Aprender, Juan Delval, 168 págs., Ed. Papirus, tel. (19) 3272-4500 (edição
esgotada)
Manifesto por Uma Escola Cidadã,
Juan Delval, 176 págs., Ed. Papirus, 34,90 reais
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